terça-feira, 6 de maio de 2014

Falso Caráter

Quando olho para minha filha caçula penso em manter-me vivo. Sinceramente, não gosto de viver. Nada mais é saboroso, nada mais é tão bonito. Não tenho o prazer da vida. Quando estou com esta minha filha, tento esconder um pouco minha tristeza. Não a quero percebendo, muito menos herdando esta tristeza. Orgulho-me dela, mas não consigo acompanhá-la por muito tempo em suas brincadeiras. Meu disfarce não dura muito.

Por causa da separação de meus pais quando era criança, minha mãe precisou trabalhar. Tendo eu apenas quatro anos, ela confiara meus cuidados às minhas irmãs durante um breve e desastroso momento. Eu precisava de alguém realmente responsável para levar-me a escola e acredito talvez naquela época não existisse ônibus escolar. Se existisse e eu não lembro, minha família não teria dinheiro para pagar. Assim eu fui morar com meus avós paterno. Não era integral, isto é, ficara aos cuidados deles apenas durante a semana. Aos fins de semana voltava para a casa de minha mãe.

"Os avós permitem tudo", dizem, mas é quase uma verdade. Não era uma festa diária como as pessoas imaginam e, ao contrário, não foi nada divertido com eles apesar de certas vantagens. Comer pratos enormes de batatas fritas, isto é, pratos enormes de uma variedade infinita de fritura ou qualquer coisa intolerável na dieta de um ser vivo nos dias de hoje, além de poder choramingar um pouquinho para evitar um legume ou uma verdura uma ou outra vez, isso era tudo de bom na cabeça de uma criança!

Minha avó era uma pintora de certo reconhecimento. Não era tão famosa, mas me lembro de muitos quadros vendidos por ela e muitos alunos para aprender "a arte". Ela recebia muitas encomendas como artista plástica também. Modelava carrancas, seus maiores sucessos. Eu aprendi um pouco sobre desenho com ela. Desenhar foi de tal maneira satisfatório a ponto de ignorar a pintura e a modelagem. Quase todos os dias passávamos horas no estúdio dela. Além dessas transferências de conhecimentos e habilidades, havia outra coisa de igual fascínio para mim: as estórias! Qual criança não gosta das estórias dos avós? Eu poderia sentir-me afortunado se não fosse minha atual situação.

Especialmente minha avó era muito religiosa. Meu avô já não falava muito disso. Aliás meu avô nunca falava muito de nada. Era muito bom e demonstrava carinho através de pequenos presentes. É só. Como tentei fazer-me entender, eu adorava estórias. Não distinguia se eram bíblicas, pessoais ou simplesmente fatos históricos. Eu as ouvia atentamente por horas e por muitas vezes... Até aprender! Aprendi o suficiente para encantar uma freira adorável com meus conhecimentos sobre os livros da Bíblia e com minha capacidade em narrar as passagens como se fosse um jornalista mirim presente nos fatos. Esta freira foi minha instrutura de catecismo e alguém por quem tenho grande estima.

Eu tenho minha religiosidade e minha devoção a Cristo, porém o padre da comunidade me puxaria as orelhas pelas faltas às missas. Por outro lado me daria algum certo crédito por minhas ações de caridade às comunidades e instituições. A religião molda o caráter, traz paz interior e foco, acredito nisso, mas somente nas mentes sãs e preparadas.

Minha avó cometeu um erro. Tudo na vida tem uma hora certa, ela não sabia disso... Há um momento apropriado para tudo, inclusive para aprender certas coisas. Dentre várias lições, pelo menos duas que entre as ter aprendido no momento errado e nunca ter aprendido, arrisco afirmar minha preferência por nunca ter aprendido.

A primeira lição foi: "ofereça a outra face". Imediatamente eu consigo expor cinco interpretações diferentes para esta lição. Quando eu era criança, não pude interpretar. A interpretação foi me dada como uma ordem e eu precisava obedecer. Para o meu meio de convívio, não poderia haver uma orientação pior a ser dada a uma criança. Na prática minha avó me fez crer que se eu fosse esmurrado em um lado do rosto, eu devo perguntar ao meu agressor "você não quer bater no outro lado também?". Eu não faria isso, mas minha mente infantil ficou confusa. Não devia revidar. Virei um saco de pancadas. Uma situação inusitada de auto-defesa atraiu os olhos dos adultos sobre mim, bem como a capacidade deles de julgar sem ouvir todas perspectivas do fato. Mal interpretado, eu senti-me como uma aberração social. Eu era criança e queria ser aceito. Passei dias sendo ignorado. No Brasil, nenhum menor de dezoito anos pode ser preso. Eu fui preso muitas vezes. Fui privado da liberdade de ter o carinho, de ser ouvido, de ser aceito. Recebia comida, tomava o banho de sol, como ocorre com um presidiário de maneira geral. Contudo este tem uma advogado e às vezes uma assistência, mas eu, com menos de 8 anos, não tive.

"Se algo não for bom para as pessoas, é pecado." Esta foi a segunda lição. Eu não deveria desejar o mal para ninguém. De todas as formas, não desejar o mal é uma boa lição! Todavia, é incrível como os adultos conseguem articular idéias para manipular pessoas. Assim a moral da lição era: impunidade física e mental. O raciocínio ocorre da seguinte maneira... Primeiro substitua a palavra "pecado" por "errado". Em seguida, imagine que mesmo a justiça, se não fosse bom para o agressor, era algo "errado" e não deveria ser realizado. É impossível alguém pensar assim? Nem tanto... Ao contrário, era muito fácil e tem sido muito fácil em todos os lugares do mundo. Tenha de um lado uma pessoa (no meu caso, uma criança) incapaz de ser ouvida e do outro lado uma pessoa com maior influência, seja chorando mais alto, seja com pais mais importantes na sociedade, seja alguém mais temido... Tendo estes dois personagens, dificilmente o resultado será a favor da justiça, mas sim, será a favor da conveniência.

Cresci num mundo dualístico: certo e errado. Simples assim: eu era agredido, não poderia responder a agressão, não tinha direito de resposta e deveria perdoar meu agressor. Uma criança com estas práticas em mente não cresceria de maneira normal. Se as outras crianças são felizes, então estão certas. Se as lições também sempre estavam certas, então, se eu estava infeliz era porque o errado era só um: eu.

Reconheço e ressalto que o problema não está na religião, mas na interpretação e na falta de toda a informação. Minha avó interpretou erroneamente algo que veio a influenciar minha infância. Fez-me muito mal. O que eu sei sobre Jesus: não era bobo. Até o momento em que teve escolha, ele respondia as ofensas e agressões de maneira digna. Nunca soube de uma passagem em que ele se obrigou a fazer algo que não acreditava. Seu caminho era o da paz, o que abrange também a paz interior ou o caminho não teria o menor sentido. Talvez a melhor interpretação para a lição "ofereça a outra face" é "ofereça outro caminho". Demorei quarenta anos para aprender algo que muita gente aprende na primeira leitura. Eu tinha aprendido que o caminho era a submissão.

Certa vez aprendi uma estória com um amigo. A cascavel ficara descontente com a solidão, sentiu falta da presença de outros animais, inclusive do homem. Perguntou então a Deus por quê a fez como cobra, visto que era um animal tão odiado. Deus respondeu que se ela quisesse mudar a imagem perante aos outros animais, em primeiro lugar, poderia evitar mordê-los. A cascavel resolveu então não atacar mais ninguém. Pouco a pouco todos perceberam que a cobra não mordia e o respeito exercido pelo medo foi se perdendo e consequentemente, para surpresa da cobra, ela foi atacada. Insistiu em não responder a violência, mas isso somente provocou mais ataques, mais e mais, até o momento que ela precisou esconder-se para não morrer. Muito machucada, ela voltou-se para Deus e cobrou-Lhe explicações sobre toda aquela violência, pois tinha ela feito tudo que Ele mandara. Deus então respondeu: de fato, eu a instrui para não morder ninguém, mas não disse que você não podia chocalhar.

Percebo ser limitada a sabedoria desta estória, mas tem seu valor para mim. Qualquer defesa como resposta a uma agressão deve ser enérgica e não é necessário que precise ser tão destrutiva como o ataque que a originou. Uma ameaça bastaria. Infelizmente ameaçar ou qualquer outro tipo de resposta a uma agressão me haviam sido tirados. Eu era a cascavel que além de ser ruim de interpretação, foi-me o chocalho usurpado.

Haviam ainda a terceira e a quarta lição. Eram aquelas ensinada pela minha mãe nos fins de semana: vergonha e o melhor. A terceira lição reforçava o que eu tinha aprendido com as lições anteriores. Se eu fizesse qualquer coisa com alguma repercussão, minha mãe seria colocada em um estado de vergonha familiar. Como se já não bastasse sentir-se em um casamento fracassado, pois era a única separação que toda a grande família conhecia em uma época em que os divórcios eram raríssimos, minha mãe impeliu-me a acreditar que, como fruto daquele fracasso, eu não poderia reforçar o desastre sendo eu outra vergonha.

A quarta lição era que os filhos dos outros eram sempre melhores. Eu era a grama feia daquela máxima "a grama do vizinho é sempre mais verde". Quando havia alguma lição a ser aprendida, era sempre dada pela minha mãe tendo a comparação como base. Algum primo sempre possuía excelência na limpeza doméstica, na organização, nos estudos e etc. Quando eu conseguia alcançar o ápice a fim de obter o devido reconhecimento e alcançar meu lugar de respeito naquela casa, eu era redirecionado para alguma coisa que me faltava. Se eu ia muito bem nos estudos, era porque não era organizado. Se era estudioso e organizado, era porque eu não limpava a casa. Se eu fazia muito bem tudo isso e as muitas outras coisas que surgiam, ou eu era desqualificado ou uma outra qualidade de algum outro primo aparecia, tudo de maneira desleal. Um exemplo? Um primo era aos sensacional, olhos da minha mãe, porque nadava e fazia judô, mas eu fui tachado como vagabundo quando pedi para praticar estes mesmos esportes anos antes. Outro exemplo? Se eu passei em alguma prova que nenhum parente passou, foi porque a prova se tornara mais fácil naquele ano.

Lembro de várias situações de constrangimento, mas me toca mais forte neste momento em que repenso toda a minha carreira. Eu aprendi a escrever com quatro anos de idade (ninguém da minha família deve lembrar, pois não foi outro filho que fez isso). Como eu gostava muito de estórias e de assistir desenhos animados, eu comecei a escrever minhas próprias estórias. Meu intuito era melhorar aquelas que eu tinha assistido ou pelo menos melhorar o final, quando eu não concordava com a estória original. Era coisa curta, dois ou três parágrafos sem nenhuma técnica, manuscritos em um papelote.

Como eu era tímido (ou intimidado, não sei ao certo), eu escondia minhas estórias. Um dia minha avó achou e mostrou para todo mundo. Eu fiquei apavorado como se eu tivesse feito algo errado. Pensei que eu seria ridicularizado, mas na verdade minha avó mostrou aos outros com muito orgulho, falando em talento e coisas assim. Acredito que ela tenha percebido minha timidez e sua intrusão, então a melhor maneira de me incentivar foi dar-me mais materiais e falar para continuar escrevendo.

Eu gostava de desenhar e escrever, e adorei mais ainda ser elogiado ou lapidado pelas pessoas ao meu redor. Eu via o mundo da minha forma e iniciei a minha jornada pela adolescência mostrando o mundo da maneira que eu via, da maneira que eu pudesse encantar e por que não receber mais elogios? Entre as pessoas que me incentivavam estavam uma datilógrafa e uma operadora de PABX do escritório do meu tio, onde também minha mãe era funcionária. Eu voltava da escola e ficava na companhia dos funcionários e inclusive destas moças esperando o turno da minha mãe acabar. Cheguei a trabalhar como "office boy" para meu tio, assim eu ajudava ao invés de atrapalhar.

Inevitavelmente as conversas ocorrem nos locais de trabalho. É a maneira como as pessoas fortalecem a comunicação perante seus colegas e consequentemente possibilitam o fortalecimento das relações profissionais. Nem sempre as conversas eram tão sérias e eu tinha oportunidade para demonstrar meu mundo e obter as repostas necessárias para amadurecer. Aquilo tudo era bom e eu estava feliz.

Um dia começou a trabalhar lá a filha advogada do sócio de meu tio. Ela não era diferente dos filhos de empresários que entendem estar implícito em sua função narrar para seus pais tudo o que funcionários fazem dentro empresa. Estender-se na vida alheia, fora da empresa, era um adicional gratuito. Alguns dias depois, enquanto voltávamos para casa, minha mãe rompeu nossa conversa com outro assunto. Ela disse que eu a estava matando de vergonha, pois advogada comentara que eu falava muita besteira. Não tive sequer direito a qualquer argumentação. A ordem era para eu calar a boca e não envergonhar mais a família.

Naquele momento eu soube que alguém morreria, o artista em mim. Executei a ordem recebida não o alimentando mais. Matei-o de fome, solidão e tristeza. Matei também meu sonho de ter uma estória virando uma animação para crianças, o sonho de saber que uma mãe contou uma de minhas estórias para seus filhos dormirem... Joguei tudo no lixo, contos, desenhos e sonhos. Tudo acabado. Eu nunca saberei se eu seria um escritor bem sucedido, mas eu já sei que estou fracassando na profissão que sobrou para mim.

Eu descobri o que eu não seria, o que não estava mais em meu destino. Entretanto, também descobri um problema sobre isso, quando morre algo no ser humano, outra coisa ocupa o lugar, principalmente os sonhos, os hábitos e o âmago. Quando meu lado sensível, apaixonado pela vida e pelo mundo, foi eliminado, o espaço deixado vazio foi preenchido coisas apropriadas e a altura da experiência vivida: pesadelos, maus hábitos, e um ser frio, amargo e sombrio.

Eu não fui capaz de apanhar a vida toda. Todas as agressões, fossem elas verbais ou físicas acumularam-se mim. Meu escape foi retirado e eu estava desprovido de sonhos. Só me cabia a desorientação dos meus próprios sentimentos e conviver com um mal dominando meu ser discreta e perversamente. Mas... Como comecei dizendo, não fui capaz de apanhar a vida toda, tampouco acumular infinitamente tantas frustrações e violência. Cedo ou tarde, o escape apareceria e quando apareceu, não foi bonito.

Nas primeiras vezes que fui constrangido, procurei minha mãe para resolver o problema, mas ela disse que não tinha tempo para bobagens, pois se preocupava com coisas importantes como por comida na mesa. Também me deixou bem claro que uma surra me aguardava, caso chegasse ao conhecimento de meus tios algum problema causado por mim. Em outras experiências, quando tentei ajuda de meus avós, os mesmos faziam tantas perguntas para ter certeza que eu não tinha interpretado mal o incidente, que eu desistia antes da conversa entrar no âmbito religioso. Não podia contar aos meus tios, pois era uma ordem. Eu não tinha um porto-seguro.

Enfim, em algum momento o inevitável aconteceria. Eu não sei qual foi o gatilho, mas acredito que ocorreu quando eu me senti mais do que ameaçado e mais do que constrangido. Foi algo muito específico que preciso descobrir. Quando o gatilho era acionado, tudo ficava negro eu respondia a ameaça com violência covardemente desproporcional. Neste estado, eu ficava possuído por algo desumano ainda selvagem em mim... Homens, mulheres, crianças ou animais, eram todos iguais, em tamanho e quantidade, e não me importava se andassem ou rastejassem, não me importava se eu amasse ou odiasse, seriam abatidos. Desde a primeira até a última vez, abri meus olhos a fim de encontrar todos vivos, mas feridos, os olhos sobre mim viam o monstro, o meu monstro interior. Meu disfarce não dura muito.

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