quarta-feira, 9 de abril de 2014

Ensina-se o que se aprende

Assistindo aquela situação entre dois gatos, algo estranho aconteceu. Comecei a ter acesso a experiências escondidas de minha consciência. Paralisei-me imerso em uma combinação de vários sentimentos, nenhum bom. Como se eu tivesse sido transportado no tempo, revivi uma jornada começando desde as minhas primeiras lembranças... Dor, medo e constrangimento. Ao terminar aquela insólita viagem até o presente momento, eu entendi meu lugar no mundo. Eu estava sendo testado... Não, eu estava sendo treinado... Treinado para ser um monstro sombrio e terrível.

Eu morava com minha esposa, duas filhas e um casal de gatos em um bairro nobre de São Paulo. Local que ostenta luxo e riqueza, mas não era nosso caso. O bairro era cercado por casas e apartamentos lindíssimos e enormes. Vivíamos em um apartamento "confortável" (eu preferia chamá-lo assim). Antes ele era "do nosso tamanho", mas deixara de ser logo depois mudança. Questionávamos como nossas coisas cabiam em um apartamento menor e não conseguíamos arrumá-las neste novo.

Minha mãe morava bem. Vivia na periferia da cidade em uma casa maior. Tinha cachorro e outros gatos. Eles ficavam brincando pelo quintal e pelo jardim, porque dentro da casa bicho não entra. Animais, especialmente cães e gatos, são como crianças e merecem a devida atenção, e atenção significa muito trabalho. Por este motivo seria impossível minha mãe adotar algum novo animal. Para ela já havia trabalho suficiente. No entanto abriu exceção para uma parente querida. Alda levou Shadow, um gato preto, para os cuidados de minha mãe.

Shadow era formidável. Já era um gato adorável e inteligente desde pequeno. Não era como aqueles gatos que fogem quando chamamos. Ele era receptivo e curioso, tudo era motivo para brincadeiras e todos eram seus parceiros. Os outros gatos se fossem humanos expressariam uma opinião contrária. Não o aceitaram. Shadow e os gatos residentes precisariam ter passado por um período de adaptação. Eu sabia fazer essa adaptação entre animais, mas somente eu sabia fazer isso por ali e eu morava longe para poder acompanhar a evolução da relação entre eles. A opção seria pagar um profissional... Gastar dinheiro estava fora de cogitação!

Assim, o pobre filhote Shadow foi vítima de surras frequentes dos outros gatos. Ele ficava apavorado a ponto de ter incontinência. Naturalmente, apaixonada por gatos, minha mãe não queria isto para ele, então na tentativa de evitar o confronto entre os "felinos", ela o mantivera preso em um quarto. Durante vários meses as portas se abriam em algum momento do dia a fim de que ele pudesse brincar em um espaço maior e para ter sua caixa de areia limpa, mas desconfio da brevidade destes momentos e da possível inexistência em dias de chuva ou de outros compromissos.

Em todas as minhas visitas passávamos grande parte do tempo com Shadow. Ele nos encantava com as brincadeiras. Uma de suas preferidas era o "esconde-pega" (versão dele de esconde-esconde): ele se escondia e nos assustava quando nos aproximávamos de seu esconderijo. Às vezes corria até o quarto onde ficava preso e trazia um de seus brinquedos favoritos para que brincássemos juntos. Quando íamos embora para nossa casa, entre outros assuntos, conversávamos sobre Shadow. Começávamos com a admiração sobre sua inteligência e terminávamos lamentando em imaginá-lo preso.

Decidimos, minha esposa e eu, adotá-lo. Ele estava crescendo e nos afligia imaginá-lo preso em um quarto grande parte da vida. Meu apartamento era humilde - pensava sorrindo, comparando com a casa, mas ao menos ele teria companhia o tempo todo. Obviamente minha mãe adorou a ideia. Calculamos bem como tudo deveria ser feito e se teríamos condições de recebê-lo.

Logo na chegada de Shadow em seu novo lar, passei a executar o processo de adaptação. Após alguns dias, os gatos mais velhos já transitavam perto dele, mas nunca permitiram um contato carinhoso.

Um dia, curioso, procurei entender porque os outros gatos não permitiam a aproximação de Shadow. Ele é muito brincalhão e meu outro gato também é. Fiquei observando e meditando ante a cada reação. Notei que Shadow não sabia aproximar-se, suas brincadeiras, ainda que fossem bem intencionadas, quase sempre eram atrapalhadas e representavam uma ameaça para os outros gatos. A recíproca era verdadeira. Ele erguia a pata em toda aproximação. Não era um gato mau, com certeza, era meigo. No entanto notei duas reações contrastantes: além desta incapacidade de se aproximar dos outros sem levantar a pata, ele tinha uns repentes de fúria. Era como se uma tranca se destravasse e a porta de um quarto sombrio fosse aberta. Ele se transformava. Tornava-se agressivo a ponto de atacar quem estivesse perto e, estranhamente, em poucos minutos voltava ao normal.

Lembrei-me de sua experiência com os gatos da minha mãe quando ele era mais jovem: ele apanhava ou era sempre ameaçado. Imaginei se ele entendera que as coisas deveriam ser assim. Talvez erguer uma das patas fosse seu mecanismo de defesa, a sua segurança. Retrocedendo mais e com empatia... Imaginei qual não foi sua decepção, quando filhote, em se aproximar de um gato pensando em um parceiro de brincadeiras e ser agredido violentamente por ele, até o socorro de alguém. Não apenas uma vez, mas repetidas vezes. Qual lição se aprende com isso? Para ganhar respeito deve-se seguir as regras e, neste caso, provar ser mais forte? E se meu raciocínio estiver certo, como ensinar algo diferente do que se aprendeu? Humanos e animais não eram tão diferentes em suas experiências afinal. Esta lógica lançou-me às minhas próprias vivências.

Minhas primeiras lembranças foram marcadas por um vizinho perturbado chamado Eduardo. Lembro-me de ter uns quatro anos e estava brincando de maneira inocente com ele (ou perto dele, disso eu não me recordo). De repente ele começava a bater em mim como louco. Seu golpe fatal era avançar com as unhas em meu rosto como se quisesse arrancá-lo da testa ao pescoço. Meu coração palpita forte com aquela situação. É agora! A cada detalhe que minha mente me permitia enxergar, eu me dividia, isto é, agora eu não era a mesma pessoa que amadureceu daquela criança. Era outro, pude ouvir a minha própria voz dentro de mim: "Covarde! Retardado! Qual seria a sorte dele se eu pudesse encontrá-lo hoje!". Em seguida lembrei-me de minha mãe passando remédio nas feridas. O remédio queimava! Trazia tanto sofrimento como o ato de ser machucado. "Retardado! Encontre-o! Você era um menino bom, você não tinha feito nada para ele. Ele é mau!". As frases se repetiam como um tambor aumentando o ritmo e a cada vez mais eu me sentia mais cheio de fúria! A última lembrança: minha mãe nada fazia... Esperava lembrar-me dela gritando com meus vizinhos, fazendo algum tipo de ameaça se o filho deles se aproximasse novamente do filho dela... Mas nada disso ocorria. Esta era a pior dor de todas e percebo carregá-la até hoje. Não me senti protegido. "Você está sozinho" - dizia a voz interior para, era a última batida daquele tambor metafórico. Eu olho para o chão como se meu sofrimento não me desse forças para erguer minha cabeça. Silêncio. Após alguns segundo senti meu coração acelerar... , meu peito se estufa. Minha postura muda... Minha cabeça ergue... Eu estava mais forte... Mais sombrio!

Shadow surpreende-me apoiando-se uma de suas patas dianteiras em meu pé esquerdo. Despertei-me como alguém que se percebe distraído.

Fui correr. Inevitavelmente corro quando estou de mau humor por isso uso a metáfora: deixo minhas frustrações no asfalto. Quando volto para casa, estou bem humorado. Aos poucos, enquanto eu corria, meus pensamentos voltavam-me para a razão, voltava a ser racional. Eu me desconheci... Nunca chamaria alguém de retardado ou ameaçaria como fiz no meu íntimo. Ouvi falar em espíritos obsessores, mas prefiro ser responsável pelo que aceito e realizo. Era eu, sou eu e somente eu. Algo em mim não estava resolvido.

Eduardo não foi o único agressor com quem tive infelizes experiências, muitos outros como ele estiveram em meu caminho. Nas ruas, nas escolas e na família. Eu sempre fui fisicamente pequeno, talvez tivesse sido isso. Talvez porque minha mãe não me defendesse e não ter meu pai conosco, pois ele desistiu da família quando eu era um bebê. Em algum lugar havia sinais como se fosse um alvo de ameaças, murros e constrangimento. Eu precisava encontrar onde estavam estes sinais e eliminá-los.

Hoje, desempregado, escrevendo a minha história, percebo-me sempre sendo assediado. Não fui uma criança feliz, esta é a verdade, e não sou um adulto feliz. Quando adolescente, lembro-me de comentários da minha nítida amargura. Se todas as pessoas tomam suas decisões baseadas em suas experiências anteriores, talvez isso ocorra de maneira consciente ou inconsciente. Indigna-me pensar em meus fracassos influenciados de alguma maneira por ser vítima de pessoas violentas. Fui vítima... Fui carrasco... Ensina-se o que se aprende... Quantas pessoas são violentas porque foram vítimas da minha violência e isso, por consequência de eu ter sido vítima não apenas uma, mas várias vezes. Seria eu capaz de ensinar algo novo às minhas filhas e quebrar este carma?

Assusta-me este tumor em mim: meu lado sombrio. Em mim adormece um "eu" maligno. Ele se alimenta das minhas frustrações e pesadelos. Todo meu conhecimento, todas as minhas habilidades, são ferramentas disponíveis para ele usar. Este monstro interior não tem valores, não tem limites. Se ele despertar e se eu não conseguir controlá-lo, ele vai destruir todo meu legado.

Olho para Shadow e respiro fundo. "É parceiro... O começo de nossa história não é bonito. Conseguiremos escrever uma continuação bonita com final feliz"?

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